sexta-feira, 17 de dezembro de 2010







Alguns momentos especiais do lançamento do meu romance, Primavera nos ossos, que ocorreu dia 15/12, na Livraria Cultura.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Lançamento do romance Primavera nos Ossos, 15/12/2010, às 19h., Livraria Cultura, 2º piso do Shopping Salvador



Entre o bambuzal, a luz fraca das 4h:30, 4h:40, quase 5h:00 da manhã. Enquanto o sol se desloca invadindo a cidade, a sombra do rosto dela vai de poste em poste. Pas-sando, repassando, qual janela de carro, capturando, refletindo-se nos pedaços da paisa-gem. O rosto dela. O contorno oval, exalando cheiro de gente machucada. O centro va-go, escondido atrás dos cabelos. Podemos dizer sem erro que é de vento e areia o meio da cara dela. Mas não, diremos melhor: na verdade, o vento, a areia, o rosto e os cabelos pouco importam, a verdade é que ela emerge do inferno, a verdade é que ela retorna à vida. Embaçada. Descongelada. Sozinha. Assim:
Levanta-se. Confere a roupa um tanto rasgada, suja de sangue. Ajeita-a. Passa as mãos sobre o tecido tentando limpá-lo. Em vão. Conforme Dante, no inferno faz frio de travar os ossos. Movimentos pelo avesso. Anda devagar como se ainda carregasse por dentro o torpor do susto levado horas atrás, ao se certificar que se tratava, de fato, de um ataque.
Beira de morte, amputação.
A pancada.
A bordoada.
Basta trazer à tona uma faísca do vivido que, feito relâmpago, no automático, a lembrança da agressão vem viva: uma serpente à espreita, um dragão preparando a cus-parada de fogo.
Sacode a cabeça, evitando que a faísca pegue fogo, atraindo-a novamente pro olho do incêndio. Concentra-se nisto: despistar o registro da agressão na memória, car-vão em brasa lhe trazendo tontura, imprecisão. Despistar e cuidar de outra realidade que lhe crava a carne desde que abriu os olhos: a dor. Mais forte que a lembrança do ataque sofrido, o que lhe perfura a carne é a dor de alicate puxando os dentes. A dor de água escaldando pés, mãos, pescoço, sexo, seios. Principalmente ali, nos bicos dos seios mordidos. E as marcas de roxo pisado, ela murmura, apalpando-se, sairão algum dia?

* * *

Fácil é pensar em falar com ele. Não como quem retorna de uma rápida perda de consciência e, confusa, põe-se a dialogar com o que não existe. Não isso de borboleta errante procurando pouso em flores baldias. Que isso, apesar de bonito, é torto e não ameniza dor nenhuma.
Nada de inventar fugas, reticências ou abstrações. Se pudesse estar olhos nos olhos com ele, comentar qualquer bobagem — não da dor, da dor agora não —, cercar-se de coisas leves, comentários sobre a primavera, sobre café expresso com creme, sobre a temperatura certa do vinho tinto, sobre fumar ou não fumar cigarros mentolados, sobre as condições do tempo em Salvador. Algo meio folha de amendoeira ao vento: leve em suas reentrâncias avermelhadas, inútil em sua função original. Que amigos, amigos verdadeiros, ela leu em algum lugar e ainda se lembra, precisam apenas de proximidade, não de conteúdo ou confissões. Precisam é estalar a língua no ar, chegarem a um palmo do coração do outro, mas não adentrarem, permanecerem do lado de fora, feito guardiões que contam histórias pra enganar o amanhecer.
Uma conversa apoio para o corpo, uma conversa pilastra, coluna grega pra escorar a dor. Escore esta hemorragia, querido. Faça em segredo uma simpatia pro corpo se endireitar de novo, pra dor ficar comportadinha. Não tão aguda. Boazinha na vitrine, como dizia Baudelaire, redizia Ana C., rediremos agora, por que não?, boazinha e anes-tesiada, por favor.
É preciso um passo, depois outro. Dentro do inferno, sobra monóxido de carbo-no. De dentro do inferno, deve se sair de fininho, mas com precisão.
Novamente, o renascer. Cante uma canção antiga: te furamos com espinho, você era rosa e não sangrou; te furamos com agulha, teu corpo era novelo e se bifurcou; te furamos com a mão de Deus, você era deusa e graciosamente desviou.
Tão simples pedir ajuda a ele.
Tão impossível obter.
Um demônio toca piano.
Ou seria clarineta?
Um demônio dança longe.
Ou seria dentro?
Enquanto tenta localizá-lo na mente, falar de tudo, menos da violência, com ele e tão somente com ele, sente o mundo, o tempo escurecer. Tropeça na fraqueza: tonteira e despreparo pra arrumar os acontecimentos. O canal da mente se fecha. A imagem dele some.
Desgraça.
Desaparece aquela voz serena, aquela calmaria de lençóis de cetim que é estar aninhada a ele.
Miséria.
Como chegar perto, como aspirar de novo detrás da orelha dele aquele cheiro que só naquele cantinho da orelha dele tem?
Alisar os cabelos dele, encostar levemente os lábios, dizer eu fui violentada, meu amor.
Assim sairia do inferno, assim estaria de volta à vida.
Bastava pensar no acontecimento, deveria dizer assim mesmo o que lhe sucede-ra? A-con-te-ci-men-to?
Não, não tem problema, entre eles jamais existiu qualquer segredo.
Bastava pensar, pra perder outra vez voz, olfato, visão.
Comichão maldito se estrebuchando: como organizar tudo em meia dúzia de palavras?
Não, não tem problema. Mais linguagem do que ela era capaz de inventar no dia a dia de sua agência? Ora, quem mais? Podia vender qualquer coisa manipulando as imagens, as palavras, qualquer coisa, caros senhores, prezadas senhoras. Não tem pro-blema, acharia um jeito de traduzir, amanhã, mês que vem, por que não?, agendaria tal demanda, sure, dear: eu fui violentada, assim, à queima-roupa, ficava bem?
Não podia nem conceber aquilo que o cérebro completamente perdido cochicha-va aos outros órgãos.
Estamos em perigo, mas ainda temos chance.
Um inimigo se espalha.
Não tente dar conta de tudo, aprenda a delegar tarefas, faça como os grandes líderes, partilhe o poder e ele se multiplicará.
Acabei de ser estuprada, querido, venha me buscar no meio da rua, me leve pra uma piscina de águas termais.
O corpo se eriça, qual bicho cujo caco de vidro adentrou fundo que nem noção do que é ser bicho atacado por um caco de vidro se tem mais, pois que completamente estraçalhado.
Feito carne moída a dor. Pernas se recusando a andar, olhos secando, células partidas, neurônios desconectados. Repetir pra si, pra ninguém: quase me arrancaram a vida minutos atrás. Veja: sai sangue da boca, do sexo, do ânus. Sai sangue até das unhas e não há como detê-lo. É preciso chegar em casa imediatamente, tomar banho, vestir uma roupa limpa, necessariamente de algodão, e cair na cama.
Mas voltar pra casa? Como poderia?
Torna a ver o mundo escorregadio e cai. Cai sem ouvir a resposta dele. Sem con-seguir visualizar a mão cheia de pelos dele. Estendida. Salvando-a.
Cai e vai apagando. A mente soletrando the end, finish, acabou. Como uma ini-miga pirracenta, a mente projetando mortalhas de seda vermelho-sangrento, úmidas num varal, orquestradas pelo vento. O último orgasmo com ele, quente de se querer morrer logo naquele quente que vem voltando ainda mais quente, ontem, ali, aquele copo com conhaque num sábado chuvoso. Uma tarde, acolá. Antes de ele confessar que amava outro cara, antes de ele querer ir embora.
Por quê, meu Deus, por quê?
Sua vida acabou, minha querida, encare os fatos.
[...]
Desperta outra vez. Anda cambaleando, depois consegue andar um pouco mais firme, lutando contra a tontura que nasce na cabeça e vai se espalhando pelo tronco até mordiscar os pés. Nos pés e mãos, agulhas trabalham a cada passo.
Ignora-as. Esfrega os pulsos, abandona o terreno baldio para onde foi levada, à força. Na subida, avista um viaduto. A memória é suficiente pra reconhecer onde está.
Orienta-se pelo velho viaduto encravado no centro da cidade, acima de sua cabeça. Atravessa o estacionamento. Esfrega de novo os pulsos marcados.
Então, a abandonaram no centro, sem moto, sangrando, sem dinheiro.
Muito bem, muito bem.
Um rapaz vai passando, perto da árvore velha que sombreia cheia de vida uma parte da calçada. Franze a testa ao vê-la:
— Precisa de ajuda, moça?
De calças jeans e boné verde-cana. Vem correndo, assustado, ao encontro dela.
— O que aconteceu, dona?
Ela tenta calcular as horas enquanto se apoia no ombro dele.
— Você precisa de ajuda? — ele volta a perguntar, confuso.
Ela o encara. Ele torce as mãos.
Sim, queridinho, toda a ajuda possível, como não?, veja, acabara de perceber: ia precisar matar dois homens logo, logo. O pensamento foi tão rápido que ela mal acreditou: does the body rule the mind or does the mind rule the body? Ligar mais tarde pro Príncipe da Ironia, pro Deus da Melancolia Infinita e perguntar: então, querido, você já conseguiu uma resposta precisa?
Lembrar dessa música é pender de novo no vácuo. Passaram-se tantos, mas tantos anos. Ela era adolescente e queria sair do Brasil. Essa canção no café da manhã, essa canção na hora do almoço, essa canção antes de dormir. O corpo governa a mente ou é a mente quem o dirige o corpo? Gostava até mais quando ocorria o contrário, quando o coração vinha mais ágil e tomava o centro. Uma vida diri-gida pela emoção, uma vida sessão da tarde, em vez daquela tão pragmática a que estava acostumada, se pudesse escolher, o que de fato escolheria?
O rapaz pergunta novamente se ela precisa de ajuda, se fora atropelada, se estava doente. Ela balança a cabeça, negando. Se não tivesse a garganta tão seca, diria que sim, fora atropelada, não: triturada, melhor: moída. Acabaram de passar feito um trator por cima de toda a sua existência.[...]

In: Primavera nos ossos, São Paulo: Casarão do verbo, 2010.