domingo, 13 de fevereiro de 2011









Sete dias. Somente sete dias depois, ela pegou num aparelho telefônico e ligou pra Michel. Nesse espaço de tempo, podia ver e sentir com mais brandura os hematomas ce-dendo, aos poucos, à cor natural da pele, o fim da fraqueza nas pernas que veio logo após a hemorragia e o ódio incrustando, espalhando calos no cérebro.
No terceiro toque, ouvir a voz dele e sorrir. Como não sorrir emocionada ao constatar que não havia perdido o friozinho no baixo-ventre, cheio de ondas esquisitas que a voz dele provoca?
Pedir que ele fosse buscá-la para um passeio na praia. Para um café na esquina. Para um cigarro na chuva. Afinal, chove pra cacete em Salvador desde que ela deixou o hospital.
Antes que ele reclamasse pelo sumiço dela, perguntando onde ela estava, que história de hospital era aquela, e blá-blá-blá, Luísa, você me deixa preocupado, blá-blá-blá, Luísa, o q-q-há-contigo-?, não, meu amado, mas amado pra valer, aquele pelo céu predestinado, sem o qual a vida é nada, sem o qual se quer morrer, entenda: não será possível ouvir coisa alguma neste instante de fundura, de imprecisão. Só será possível, num arranco violento, certeiro, antes de qualquer pergunta ou censura, dar a notícia de galope, saliva quase faltando, voz sumindo do médio pro grave, inclusive pra ver se ela mesma conseguia acreditar na realidade saindo tão absurda e tão crua da garganta:
— Michel, escute: eu fui estuprada.
— O QUÊÊÊ???
Surpresa.
Esse grito abafado ninguém esperava.
Quase lhe cai da mão o aparelho telefônico.
Ele sempre fora um homem tranquilo. Calmíssimo. Chegava a dar nos nervos sua mansidão.
O descontrole viera, enfim.
Então é isto: até os homens mais tranquilos saem de si quando a violência invade as paredes de sua casa.
Muito bem, muito bem.
E ela, ela ainda fazia parte da casa dele? Ou tudo já se esgarçara e aquilo era resto de lealdade apenas, reflexos, refluxos, ecos do elemento água?
Sim, porque ele é de Peixes, ela lembrou a tempo.
Mas, ora, ora, a tempo de quê?
Miséria de vida! A quem importariam detalhes sórdidos que vêm justamente numa hora deplorável quando não se tem espaço, cabeça, vontade de lembrar coisa al-guma? Bobagens, ela reconsidera. Os detalhes, as referências. Que importância tem saber o signo dele?

TRECHO DE PRIMAVERA NOS OSSOS